05/05/2022

Institucional

Curiosidades sobre o Sino do Carmo

Curiosidades sobre o Sino do Carmo

 

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Confira a crônica na íntegra:

 

O sino do Carmo

Escrito por Irmão Bonifácio – Crônica extraída do livro Carmo, 80 anos – Crônicas (1988), páginas 118 a 120 - Editora ArtTexto.

 

 “Vivos voco

Mortuos plango

Fulgura frango”

Inscrição num velho sino

 

O Carmo nasceu quando a pequena Caxias contava com menos de cinco mil habitantes, quando todos conheciam todos, quando cada cidadão tinha uma individualidade marcada e marcante, em que todos se sentiam importantes e cada galo tinha seu poleiro. Galos eram os Iíderes. A comunidade não era ainda uma massa gregária e amorfa.

As pessoas importantes eram o Intendente, o Vigário, o Comandante, o Delegado, o Diretor do Colégio, o dono do cinema...

Os apitos das fábricas eram ouvidos e acatados. Quatro. Sinos comandavam a cidade provinciana: o do colégio, o do Eberle, o da Viação-Férrea e, acima de todos, aquele enorme da igreja matriz, tão pesadão que, após cem anos, ninguém ainda conseguiu pô-lo no alto duma torre.

Os sinos da matriz eram ouvidos num raio de mais de dez quilômetros e ditavam o horário da cidade. O toque dos sinos de fabricação alemã, de afinação brilhante, era poético, nostálgico, convidativo, alegre, plangente, lúgubre, de acordo com os sentimentos que iam na alma dos ouvintes ou as circunstâncias em que eram tangidos.

O sino do colégio, este era tirânico e odiado, pois tocava muito cedo chamando os alunos relapsos e vadios. Aquele sino era mágico, pois tinha dois toques: um, infernal, antes das aulas, e outro, celestial, quando no final duma manhã de estudo. Tocava no início e no fim dos recreios. Alguns sineiros marcaram época pelo sadismo com que puxavam o badalo do sino no início da manhã. Para os colegas eles eram carrascos manejando um instrumento de tortura. Um deles foi o Sérgio Denicol.

O sino era odiado na medida da preguiça dos alunos. Ele era tabu e nenhum aluno, além do sineiro oficial, tinha autorização de mexer na campana sagrada.

Vários sinos foram quebrados pela fúria dos “Corcundas de Notre Dame” do Carmo. O Irmão Maurício mandava-os ao Eberle para serem refundidos, mas voltaram sem a sonoridade original.

O Irmão Ramirão conseguiu, não sabemos onde, um belo sino de bronze, de fabricação inglesa que fora salvo na demolição duma locomotiva da Via-Férrea. Foi com orgulho que o instalou bem no alto duma coluna do pátio.

 

Aconteceu o misterioso. Este sino tocava sozinho em altas horas da madrugada, tangido por mãos de fantasmas. Os Irmãos acordavam e um dos mais afoitos safa correndo ao pátio, mas nada de concreto via a não ser o badalo do sino dando a última oscilação pendular e um fio de linha forte cuja extremidade desaparecia na sebe de ligustro que se encontrava do lado interno do muro.

Os cochichos nas rodinhas dos moleques denotavam, no dia seguinte, quem eram os fantasmas. Nada de castigos; nada de denúncias; sigilo total.

Houve noite de trégua e noites de atividades paranormais de sino tocando sem sineiro à vista.

Certa madrugada, o lrmão Francisco Alberto, grande mestre, diretor, economista, amigo fanático dos jovens, pescador e humorista nas horas de folga, resolveu dar uma volta pela praça Rui Barbosa.

No Carmo, o sino badalava zombeteiro a intervalos regulares. Bem na esquina do Magnabosco estava a turminha arteira rindo doidamente e puxando um cordel de linha de pesca que passava por postes, árvores, muro, forquilhas de plátanos e que terminava num tijolo que era o contrapeso do badalo do sino. Por meio desse fio os fantasmas badalavam com prazer. O Irmão Francisco surgiu, ninguém sabe como, e pilhou em flagrante os marmanjos. Susto incrível, palidez de morte, paralisia total foram uma coisa só. A resposta do Tico-Tico foi de matar: “Ótimo, meus amigos! Gosto muito de pescar. Recolham já a linha sem um nó, antes que eu me incomode”. Era macaco subindo pelas árvores, pelos postes, pulando muro e grade. Num minuto, duzentos metros de fio novinho de pesca estavam nas mãos do Irmão Francisco.

Nada mais de castigo, pois necessário não era. Os Irmãos, também eles tinham espírito esportivo e saboreavam uma brincadeira inteligente de seus alunos. Durante um mês as noites foram tranquilas nas arcadas do Carmo.

Hoje, é raro que os jovens procedam de modo inteligente e sadio em suas brincadeiras. Pixar paredes com indecências e palavrões, andar de motos de descarga ruidosa, cometer infrações às leis de trânsito, desacatar pessoas, andar ébrios ou drogados pelas ruas, depredar o patrimônio público e particular, tudo tão distante das brincadeiras sadias dos tempos de antanho.

Nos tempos do sino, o Irmão Francisco, ou algum de seus colegas, apanhava em flagrante os moleques, mas tudo terminava num puxão de orelhas, num xiste irônico, num sermãozinho, num pedido de desculpas, num aperto de mão. Tudo era perdoado, esquecido e ficava em família. Os mesmos alunos arteiros da noite no dia seguinte vibravam pelo colégio e defendiam suas cores com unhas e dentes nas competições esportivas de que o Carmo participava.

As cretinices de hoje terminam nas delegacias, nos juizados de menores e a nada de construtivo levam.

E o sino do Carmo, que é feito dele?

Evaporou-se numa noite gélida de inverno, dia 13 de agosto, lua cheia. É prenúncio de um azarão que aguarda a quem o furtou. Como detetive fantasmagórico acompanhamos sua trajetória. Lá está ele bem guardado e polido numa bela mansão dum ex-aluno, aguardando para, em futuro não remoto, tocar em dobre fúnebre no enterro de seu sortudo possuidor.

Possuir sino roubado dá um azar medonho. Pode tardar um pouco, mas não falha nunca, pois “mortuos plango”. 

 

 

 

 

 

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